sábado, 6 de junho de 2015

 AS MULHERES TRANSGÊNERAS E O BANHEIRO FEMININO: 
CRÍTICAS ÀS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS HETERONORMATIVAS[1]

Armando Januário dos Santos (Armando Januário)[2]
Marco Antonio Matos Martins[3]

Resumo: o objetivo do presente estudo é problematizar as Representações Sociais sobre a legitimidade da utilização do banheiro feminino pelas mulheres transgêneras. A partir das contribuições de Moscovici (1978; 2004) e Jodelet (2002), o presente estudo analisou uma situação real envolvendo o banheiro feminino e uma mulher transgênera. Neste ponto, a teorização de Foucault (1988), acerca dos discursos de poder sobre a sexualidade foi de importante valor no desenvolvimento desta pesquisa. Os resultados apontaram para Representações Sociais expressando a heteronormatividade que, por sua vez, exercita diária e continuamente a negação de direitos básicos à população transgênera.

Palavras-chave: transgeneridades, Representações Sociais, heteronormatividade.

Introdução
            As transgeneridades se encontram em crescente discussão na sociedade brasileira. Conceitos como travesti e transexual despertam interesse, na medida em que se discute principalmente os direitos das mulheres transgêneras, a exemplo do uso do banheiro feminino. Por isso, antes de prosseguir rumo ao objetivo central desta pesquisa, faz-se conveniente abordar alguns conceitos. Assim, tornar-se-á mais exequível compreender a sequência do texto.
            Primeiramente, o termo sexo refere-se a dimensão biológica do humano. Aponta para as células responsáveis pela reprodução, espermatozoides e óvulos. Já o conceito de gênero perfaz como o indivíduo se percebe e como se identifica socialmente (JESUS, 2012). Nesta perspectiva, a espécie humana pode ser classificada como transgênera ou cisgênera (JESUS, 2012). Cisgêneras ou apenas cis, são as pessoas que possuem a identidade alinhada ao gênero atribuído no seu nascimento, a exemplo das mulheres que nasceram com uma vagina e se identificam enquanto mulheres (JESUS, 2012).
Entretanto, há pessoas que não se identificam com o gênero conferido ao nascer. São denominadas não-cisgêneras, transgêneras, ou apenas trans (JESUS, 2012). Apesar de não ser consensual no Brasil, pode-se utilizar a transgeneridade em duas formas de vivenciar o gênero: 1) identidade – transexuais e travestis podem se inserir nesta experiência, e 2) funcionalidade – transformistas, drag queens, drag kings e crossdressers podem se concentrar neste processo existencial (JESUS, 2012).
Feitas essas primeiras considerações, o objetivo primordial desta pesquisa é analisar as Representações Sociais sobre as mulheres transgêneras quanto ao seu acesso ao banheiro feminino, e, por consequência, seu trânsito entre os gêneros.

Fundamentação teórica
            Conforme Moscovici, a sociedade convenciona e familiariza comportamentos, produzindo saberes baseados em dois construtos: 1) o universo consensual, caracterizado pelo senso comum, e 2) o universo da reificação, de natureza científica (MOSCOVICI, 2004). O primeiro universo é produzido a partir dos “sábios amadores” (MOSCOVICI, 1978, p. 56), que devem ser valorizados, pois no interior do senso comum, não foram responsáveis por teorias como fascismo e racismo. Na verdade, os membros do segundo universo, do alto de sua racionalidade científica, é que foram (MOSCOVICI; MARKOVÁ, 1998). Para Jodelet, “as representações sociais são uma forma de conhecimento socialmente elaborado e compartilhado, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social [de poder]” (JODELET, 2002, p. 22). Seguindo este raciocínio, infere-se que as Representações Sociais, com sua simplificação e praticidade, contribuem para a formação de saberes e “verdades” sobre a sociedade.
            Esta produção de “verdades”, através dos discursos, já havia sido apontada por Foucault, que traçou um panorama histórico acerca dos saberes científicos, no campo da sexualidade humana (FOUCAULT, 1988). Para ele, se antes do século XIX, a “verdade” era produzida segundo “o velho modelo jurídico-religioso da confissão”, neste período, ela passou a ser construída via discurso científico, em cinco etapas: (1) reinscrição da confissão no método científico, a exemplo das associações livres da clínica psicanalítica; (2) crença de que o sexo é objeto de inesgotáveis questionamentos e inúmeras pesquisas científicas, que tudo podem questionar e discursar sobre esta temática; (3) crença de que o sexo é de natureza obscura e clandestina; (4) interpretação dos dados colhidos na relação entre médico e paciente, onde não apenas a “verdade” do sexo é relatada por este, mas para ser considerada válida, deve passar pelo crivo da interpretação daquele, e (5) medicalização das consequências da confissão, haja vista o material confessado ser classificado como certo ou errado, saudável ou patológico, devendo passar pelo tratamento médico, se fora dos ditames da normalidade (FOUCAULT, 1988, p. 74-77).
            As concepções de Foucault, Moscovici e Jodelet criticam a visão científica binária, em que pese conferirem relevância significativa a subjetividade, a afetividade e a cultura, para a produção do saber no campo das ciências humanas, ao mesmo tempo em que se colocam na contramão dos embates entre senso comum e conhecimento científico. Abordam as relações de poder localizadas no íntimo da produção de saberes. Enfim, evidenciam relações de poder resultantes da produção de saberes e de controvérsias por esses mesmos saberes.

Metodologia
            Trata-se de pesquisa documental, de base qualitativa, com análise de postagens em sites da Internet. Os estudos que utilizam documentos para alcançar dados indiretos sobre a população, predominam nas ciências humanas (LAVILLE; DIONNE, 1999). Documentos visuais são fontes relevantes de informação e mais do que apenas textos impressos (LAVILLE; DIONNE, 1999). Na verdade, todos os recursos visuais utilizados para disseminar informações acerca das atividades humanas, podem ser considerados documentos, os quais são acessados com facilidade e coletados a baixo custo por parte do pesquisador (LAVILLE; DIONNE, 1999).
            Os dados foram acessados e coletados a partir de três sites, entre os dias 9 e 10 de janeiro de 2014. Dos três, o primeiro se destaca pela linguagem popular, o segundo representa o principal jornal impresso e virtual do Norte-Nordeste brasileiro, e o terceiro cita as opiniões de várias pessoas. Os links dos sites encontram-se elencados nas referências, respectivamente.
Das vinte e duas postagens, quinze foram consideradas relevantes, uma vez que continham o essencial para a compreensão dos fenômenos estudados nesta pesquisa (LAVILLE; DIONNE, 1999). Mantidas as quinze postagens na íntegra, foram construídas seis categorias, distribuídas pelas seis primeiras letras do alfabeto, a fim de analisar as nuances dos fenômenos ocorridos, conforme tabela que segue na próxima seção.

Resultados e discussão
O fato que motivou esta pesquisa ocorreu em 9 de janeiro de 2014, quando em um conhecido shopping da cidade do Salvador, 21 funcionários através de abaixo-assinado, solicitaram o impedimento do acesso de uma mulher transgênera, também funcionária, às dependências do banheiro feminino.
POSTAGENS E CATEGORIAS
CATEGORIA A – Desconhecimento dos conceitos de orientação sexual e de identidade de gênero
“Meramente absurdo, o banheiro deve ser separado por sexo FEMININO e MASCULINO e não por opção sexual, isso é uma coisa indiscutível, será que a sociedade está ficando louca. Jamais aceitaria um travesti entrando em um banheiro com a minha mulher, isso é falta de respeito total ao direito de cada um e mais um homem pode facilmente sew vestir de mulher fingindo ser um travesti, pelo amor de Deus, vamos pensar só um pouquinho gente........ “

Entendo a postura do GGB, contudo travesti não é reconhecido como genero feminino, mas sim masculino. Logo deve usar o banheiro masculino. Não se trata de preconceito. Simples assim.
Mas um travesti é homem, nunca foi,é ou será mulher, nem com mil cirurgias, JAMAIS irá gerar vida sem um útero. O conteúdo da resposta do shopping diz “se sentir a vontade”, aí o cara diz,”me sinto a vontade vendo mulheres”.
CATEGORIA B – Respeito à diferença
“Agora que todos estão sendo contras as Travestis e Transex poderem usar o banheiro feminino, os machões de plantão iria deixar ela usar o banheiro Masculino? As travestis tem uma identidade feminina isso é comprovada pela psicologia(Ciência). Além do mas a Travesti e funcionaria de uma loja e tem todo o direito de usar o banheiro feminino das funcionarias. Fora o despeito que essas 21 funcionarias provavelmente deve ter pois acho que a Travestis que não nasceu biologicamente mulher hoje deve viver uma identidade feminina muito mas bonita que as tais funcionarias que nasceram mulher.Aqui em Simões Filho a transfobia é crime, todas as trans podem usar o banheiro feminino nas escolas, lojas e órgãos públicos.”

“Bem como já é do conhecimento de todos nos, isso é uma grande bobagem desde quem trata-se tambem de uma quase mulher e tem seus direitos garantidos sem descriminação.”

Parabenizo a postura do shopping e lamento a atitude dos 21 funcionários. São infelizes preconceituosos, que não entendem que isso pode acontecer com alguém de suas famílias. Pobres ignorantes.
CATEGORIA C – Binarismo/alinhamento sexo-gênero
“Agora que todos estão sendo contras as Travestis e Transex poderem usar o banheiro feminino, os machões de plantão iria deixar ela usar o banheiro Masculino? As travestis tem uma identidade feminina isso é comprovada pela psicologia(Ciência). Além do mas a Travesti e funcionaria de uma loja e tem todo o direito de usar o banheiro feminino das funcionarias. Fora o despeito que essas 21 funcionarias provavelmente deve ter pois acho que a Travestis que não nasceu biologicamente mulher hoje deve viver uma identidade feminina muito mas bonita que as tais funcionarias que nasceram mulher.Aqui em Simões Filho a transfobia é crime, todas as trans podem usar o banheiro feminino nas escolas, lojas e órgãos públicos.”

“\” O seu direito termina, onde começa o meu.. ! \” Todos deveriam aprender essa frase na escola... Se as pessoas se sentem incomodadas, não é homofobia ! Se o banheiro é para o sexo feminino, ele que faça uma mudança de sexo ( cirurgia ) ai ele pode entrar, pelo contrario carnalmente ele ainda é homem... tem um \”P\” e não uma \”V\””

“Bem como já é do conhecimento de todos nos, isso é uma grande bobagem desde quem trata-se tambem de uma quase mulher e tem seus direitos garantidos sem descriminação.”

Entendo a postura do GGB, contudo travesti não é reconhecido como genero feminino, mas sim masculino. Logo deve usar o banheiro masculino. Não se trata de preconceito. Simples assim.

Engraçado! Não vejo lésbica querendo entrar no banheiro masculino! E outra coisa, quando um travesti é preso para qual presídio ele vai? Masculino ou feminino?
O PIOR DE TUDO É QUE SE NASCESSE MULHER, QUERIA SER HOMEM. VAI ENTENDER.

Eaí, ele é homem ou mulher? Que banheiro ele ou êla deve usar afinal? afinal essa situação n vai agradar a ninguém, já vi q o futuro vai ser criar banheiros para gays, lésbicas e travesti

Mas um travesti é homem, nunca foi,é ou será mulher, nem com mil cirurgias, JAMAIS irá gerar vida sem um útero. O conteúdo da resposta do shopping diz “se sentir a vontade”, aí o cara diz,”me sinto a vontade vendo mulheres”.
CATEGORIA D – Patologização das sexualidades não reprodutivas
“\”Grande bobagem\” é querer que as pessoas que nascem normais e são normais aceitem e passem constrangimentos com estas pessoas que se transformam em função de um desejo pessoal pois convivam não só com os peitos,bundas,cabelos....artificiais,mas com as dores de ter que se enquadrar num mundo FAMILIAR que não aceita estas...... deixa pra lá"

“Eu é que não deixaria uma filha minha entrar num banheiro com um traveco, sabe-se lá se é traveco mesmo ou um pedófilo disfarçado. O Barra não deve permitir de jeito nenhum que estes deformados usem o sanitário feminino “
CATEGORIA E – Representação Social das mulheres transgêneras enquanto criminosas
“Traveco também ataca, ele está para qualquer situação, portanto nem o shoping nem a justiça devem permitir em hipótese alguma inclusive eles são muito ousados, estão aproveitando o que a justiça já permitiu para \”avacalhar\””
CATEGORIA F – Segregação Social
“Acredito que agir com discriminação e xingamentos não é a melhor maneira já que a população GLS é a que mais cresce, logo ajuda no faturamento é hora das organizações que recebem grande numero de pessoas pensarem em construir banheiros que atendam também a essa demanda.”

Deve ja existir um banheiro para mixtos (sem indicar se e’ de homem ou mulher) para estes casos

A categoria A, denominada “Desconhecimento dos conceitos de orientação sexual e de identidade de gênero”, foi construída com base nas postagens que confundiam os referidos conceitos, misturando-os ou explicando-os de forma equivocada. É válido mencionar que, a despeito do gênero, a orientação sexual se constitui enquanto atração afetiva e sexual que uma pessoa sente por outra (JESUS, 2012).
            A categoria B, definida por “Respeito à diferença”, enquadrou as postagens favoráveis a utilização do banheiro feminino pelas mulheres transgêneras. Os conceitos de diferença e diversidade são problematizados por Miskolci (2012). Para ele, diversidade pressupõe a convivência respeitosa com o outro, mas sem a troca de experiências, enquanto diferença concebe o envolvimento relacional com esse outro, através de vivências e diálogos, com a plena consciência de que tal relacionamento será transformador (MISKOLCI, 2012).
A categoria C, conceituada “Binarismo / alinhamento sexo-gênero”, abrangeu as postagens que normatizam e consolidam rigidamente os conceitos de sexo e gênero. A categoria em questão se refere ao paradigma histórico de fixidez entre os sexos masculino e feminino, atrelado a ideia da relação direta entre sexo, de constituição biológica, e gênero, construto psicossociocultural. Tal conceito estereotipado, que liga de forma compulsória sexo e gênero, é denominado cissexismo (JESUS, 2012).
            “Patologização das sexualidades não reprodutivas”, conteúdo da categoria D, reuniu as postagens que encaram como doentias, as práticas sexuais e as identidades de gênero incongruentes com as (hetero)normas vigentes de sexualidade (FOUCAULT, 1988).
            “Representação Social das mulheres transgêneras enquanto criminosas”, alvo da categoria E, refere-se às postagens onde o comportamento de tais pessoas é visto como uma ameaça à segurança física das usuárias do banheiro feminino, ou associando as transgeneridades ao banditismo (FOUCAULT, 1988).
                Por último, a categoria F, denominada “Segregação Social”, envolveu as postagens que sugeriram a criação de banheiros para pessoas de qualquer gênero adentrar, ou sanitários construídos para pessoas transgêneras, apartando-as do acesso aos demais banheiros.
A partir da coleta de dados, o que mais chamou a atenção do autor foi: 1) a maior ocorrência da categoria C em relação as outras categorias, e 2) como as categorias se inter-relacionam, formulando Representações Sociais acerca das mulheres transgêneras.
            A maioria das postagens foi incluída na categoria C, o que evidenciou a Representação Social dos corpos das mulheres transgêneras, com surgimento no universo de reificação (MOSCOVICI, 2004). Com efeito, desde o século XIX, o discurso científico ocidental legitimou a dicotomia pênis-homem, vagina-mulher, privilegiando assim a procriação, ao passo que patologizou as outras práticas sexuais que não tinham tal finalidade (FOUCAULT, 1988). Assim, a partir do universo de reificação, as Representações Sociais elaboraram a realidade para uma conjuntura social de empoderamento (JODELET, 2002), incorporadas pelos “sábios amadores” ao seu universo, o consensual (MOSCOVICI, 1978, p. 56).
            A inter-relação entre as categorias comprova que as Representações Sociais construídas pelo universo de reificação reverberam no universo consensual e vice-versa (MOSCOVICI, 1978). Neste cenário, as mulheres transgêneras, são encaradas pelo primeiro universo enquanto portadoras de uma disforia de gênero (APA, 2012). Fazendo eco a este pressuposto científico, o universo consensual elabora acerca de tais pessoas Representações Sociais, onde as mulheres transgêneras são encaradas enquanto “deformadas”, categoria D, e dispostas a “qualquer situação [de violência]”, categoria E. O resultado deste processo é o surgimento de formas de exclusão, a exemplo da ideia de criar banheiros específicos ou “mixtos” para esta população, conforme expresso na categoria F.

Considerações finais
O questionamento acerca da legitimidade do uso do toalete feminino por mulheres transgêneras, presente na maioria das postagens, remete à reflexão do status patriarcalista arraigado na sociedade. De fato, o patriarcado[4], apoiado em Representações Sociais transfóbicas e cissexistas, perdura na sociedade brasileira, se manifestando em novas formas de violência simbólica (JANUÁRIO; MARTINS, 2013).
Os resultados desta pesquisa visibilizaram a mixórdia acerca dos conceitos de sexo e gênero. As mulheres transgêneras são percebidas enquanto corpos desimportantes, incapazes de atingir a plenitude das mulheres cisgêneras. Não são consideradas nem mulheres, nem homens, pois ousaram questionar a rígida fronteira heteronormativa, em que homens possuem pênis e mulheres, vagina. Seu acesso ao banheiro feminino é visto como perigoso e constrangedor, passível de uma legitimada reação violenta. Na verdade, conforme expresso nas postagens, elas não deveriam nem estar presentes naquele e nos demais espaços onde a cultura heteronormativa se faz presente, uma vez que ferem princípios básicos desta, a exemplo do casamento monogâmico, e da família heterossexual com vistas à reprodução.
Esta pesquisa também visibilizou a opressão a que as mulheres transgêneras estão diariamente submetidas. Comprovou-se aqui que por trás da prática de assinar uma solicitação visando impedir o acesso ao banheiro feminino, encontram-se discursos que incitam as mais diversas formas de violência perpetradas contra esta população.
Em nenhum momento, as postagens revelaram qualquer preocupação de seus autores com o fato de que para a população transgênera, chegar a um posto de trabalho formal representa uma verdadeira proeza. Por não se encaixarem aos padrões culturais heteronormativos, são comumente rejeitadas pelas suas famílias e não conseguem concluir a Educação Básica. Neste ponto de suas existências, a profissão do sexo não é uma opção, antes representa a única possibilidade de sobrevivência. Exatamente aí, quando estão em situação de maior vulnerabilidade, é que se constituem alvo fácil de múltiplas formas de agressão, culminando com assassinatos motivados por transfobia: dos 100% de assassinatos cometidos contra pessoas transgêneras em 2013, 40% ocorreram no Brasil (ASSASSINATO DE HOMOSSEXUAIS (LGBT) NO BRASIL: RELATÓRIO 2013 / 2014).
Compete, assim, aos diversos setores da sociedade, repensar discursos e práticas, problematizando as Representações Sociais heteronormativas vigentes, a fim de que os direitos humanos possam realmente ser garantidos a toda e qualquer pessoa, não apenas àquelas que se enquadram nas (hetero)normas amplamente preconizadas pelos diversos mecanismos culturais presentes, as quais alijam do seu meio qualquer possibilidade de (hetero)discordância.

Referências

AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION (APA). Gender dysphoria. Disponível em: http://www.dsm5.org/Documents/Gender%20Dysphoria%20Fact%20Sheet.pdf. Acesso em 25 jan. 2014.

ASSASSINATO DE HOMOSSEXUAIS (LGBT) NO BRASIL: RELATÓRIO 2013 / 2014. Disponível em: http://homofobiamata.files.wordpress.com/2014/03/relatc3b3rio-homocidios-2013.pdf. Acesso em: 01 mar. 2014.

BAFAFÁ NO SHOPPING BARRA: TRAVESTI QUER USAR BANHEIRO FEMININO. Disponível em: http://www.bocaonews.com.br/noticias/bafafa/economia/77734,bafafa-no-shopping-barra-travesti-quer-usar-banheiro-feminino.html. Acesso em 20 jan 2014.

FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque, 22.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

FUNCIONÁRIAS TENTAM BARRAR TRAVESTI EM BANHEIRO DE SHOPPING. Disponível em: http://atarde.uol.com.br/materias/1560492. Acesso em 20 jan 2014.

FUNCIONÁRIOS PEDEM QUE TRAVESTI NÃO USE BANHEIRO FEMININO EM SHOPPING. Disponível em: http://g1.globo.com/bahia/noticia/2014/01/funcionarios-pedem-que-travesti-nao-use-banheiro-feminino-em-shopping.html. Acesso em 20 jan 2014.

JANUÁRIO, A.; MARTINS, M. A. M. Sobre “Cacau” e putas: a produção e o lucro da atividade do sexo no patriarcado rural. In: SEMINÁRIO ENLAÇANDO SEXUALIDADES, 3, 2013, Bahia: Anais... Salvador: UNEB, 2013. Disponível em: http://www.uneb.br/enlacandosexualidades/files/2013/06/Sobre-Cacau-e-putas-produtividade-e-lucro-no-patriarcado-rural.pdf. Acesso em: 24 jan 2014.

JESUS, J. G. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. 2.ed. Brasília: Autor, 2012.

JODELET, D. Representações sociais: um domínio em expansão. In: _______. (org.). As Representações Sociais. Rio de Janeiro: Eduerj, 2002, p. 17-44.

LAVILLE, C.; DIONNE, J. A construção do saber: manual de metodologia da pesquisa em ciências humanas. Trad. Heloísa Monteiro e Francisco Settineri. Porto Alegre: Artmed; Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.

MISKOLCI, R. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica. Serie Cadernos da Diversidade. UFOP, 2012.

MOSCOVICI, S.; MARKOVÁ, I. Presenting social representations: a conversation. Culture & Society, v. 4, n. 3, p. 371-410, 1998.

MOSCOVICI, S. A Representação social da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

_______. Representações Sociais: investigações em Psicologia Social. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2004.



[1] Artigo publicado no X Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, 27-29 de agosto de 2014, Universidade Federal da Bahia.
[2]Pós-graduando em Gênero e Sexualidade. Membro do Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade / Nugsex Diadorim da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Graduando em Psicologia e graduado em Letras com Inglês pela mesma instituição. Professor de Inglês. E-mail: armandopsicologia@yahoo.com.br.
[3]Vice Coordenador do Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade / Nugsex Diadorim da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Professor Assistente de Antropologia do DCH – Campus V pela mesma instituição. E-mail: mmartins@uneb.br.
[4]Para maior compreensão do conceito de patriarcado, sugere-se a leitura do texto Sobre “Cacau” e Putas: a produção e o lucro da atividade do sexo no patriarcado rural (JANUÁRIO; MARTINS, 2013).

sexta-feira, 9 de maio de 2014

SOBRE “CACAU” E PUTAS: A PRODUÇÃO E O LUCRO DA ATIVIDADE DO SEXO NO PATRIARCADO RURAL


SOBRE “CACAU”[1] E PUTAS: A PRODUÇÃO E O LUCRO DA ATIVIDADE DO SEXO NO PATRIARCADO RURAL
Armando Januário dos Santos [2]
Marco Antonio Matos Martins [3]

Resumo: a partir de uma análise crítica da obra Cacau, do escritor baiano Jorge Amado e dos diversos conceitos acerca do patriarcado, o presente estudo relaciona a atividade do sexo pago ao sistema de dominação dos grandes latifundiários, em uma perspectiva de produção e lucro. Neste cenário, as mulheres não possuem escolha, senão enveredar por dois caminhos: serem mães e esposas de homens que, diferentes delas, possuem direitos ilimitados e poder quase absoluto, ou serem desvirginadas antes do casamento, e a partir daí, vistas como mulheres desonradas e empurradas à prostituição. Os resultados apontaram para as prostitutas como grupo excluído, revelando que tanto elas como as profissionais do sexo da atualidade, apesar de mais de meio século de distância, sofrem práticas discriminatórias similares, pois o patriarcado persiste.

Palavras-chave: prostituição, patriarcado, sexo, gênero, discriminação.

Abstract: from a critical analysis of the book Cacau, by Bahian writer Jorge Amado and of several concepts about the patriarchy, this study relates the activity of sex paid to the system of domination of the grand landowners, in a perspective of production and profit. In this scenario, women have no choice but to follow two paths: being mothers and wives of men who, different from them, have unlimited rights and almost absolute power, or lose virginity before marriage, and so, they be seen as dishonorable women, being forced into prostitution. The results pointed to prostitutes as excluded group, revealing that they and sex workers today, despite more than half a century away, suffer similar discriminatory practices because patriarchy persists.

Key-words: prostitution, patriarchy, sex, gender, discrimination.
Introdução
Designada pelo senso comum a profissão mais antiga da humanidade, a atividade do sexo é alvo de discussões sobre sua legitimidade enquanto profissão, apesar do avanço no campo dos direitos humanos. Ainda no presente século, a sociedade brasileira, envolta em representações pautadas pelo conservadorismo, vê nas “garotas de programa” uma afronta a ideologia cristã burguesa que evoca o casamento monogâmico como modelo a ser seguido. Porém, o que se observa é um grande número de pessoas – entre elas, homens e mulheres casados – relatar a procura pela prostituição como via de escape da rotina dos seus relacionamentos, ou como uma maneira de conhecer novas formas de sentir prazer. Por outro lado, estes mesmos sujeitos não admitem a possibilidade de avanços significativos nas relações trabalhistas das profissionais do sexo, seja na forma de associações deste grupo, passando pela formação de sindicatos e chegando a legislações específicas que garantam direitos, a exemplo do Projeto de Lei 4211/2012, que divide opiniões no cenário nacional.
Feitas essas primeiras considerações, o presente estudo recorre a uma obra fictícia, a qual reflete o pensamento vigente de sua época: as mulheres “de família” estavam destinadas ao casamento e a maternidade, enquanto que as “mulheres-damas” eram para o gozo sexual clandestino e restrito a quem podia pagar ou de alguma forma beneficiá-las.
Cacau (1933), segundo romance do escritor baiano Jorge Leal Amado de Faria (1912-2001), traduzido em diversos idiomas e tendo a primeira edição – cerca de dois mil exemplares – esgotada em um mês, narra a dinâmica socioeconômica na região cacaueira envolvida nos moldes capitalistas do patriarcado rural: exploração dos trabalhadores rurais pelos coronéis do cacau, situação de pobreza e miséria a qual a classe trabalhadora brasileira – em especial, a camponesa – se encontrava na primeira metade do século passado, e, principalmente, o olhar conservador e machista exercido pelas classes dominantes sobre as mulheres. Tudo isso com a cooperação do governo getulista, iniciado em 1930 e que se estenderia, à custa de golpes e escândalos, sem interrupções até 1945. O então escritor ainda despontando com a obra O País do Carnaval (1932), militante da causa comunista não teve dúvidas: diante da Assembleia Constituinte de maio de 1933 – para muitos comunistas farsa e manipulação, que acabou resultando na Constituição de 1934 – o jovem nascido na fazenda Auricídia, distrito de Ferradas, município de Itabuna (FUNDAÇÃO CASA DE JORGE AMADO), recorreu as letras como instrumento de denúncia e protesto ante a realidade social experimentada pelas classes desfavorecidas. Segundo ele próprio escreveu na epígrafe de Cacau: “tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um romance proletário? (AMADO, 2000, IX)”.
Breve resumo da obra
Proletária ou não, a narrativa impressionou o público leitor por investir em uma problemática pouco abordada naquele momento histórico: as diversas formas de exploração do homem. O protagonista José Cordeiro, que só irá revelar seu nome ao fim da trama, filho de um industrial em grave crise econômica, vai para a Bahia, tentando o sucesso que não conseguira em sua terra natal, São Cristóvão, Sergipe. Infelizmente, a experiência trabalhista que ele vivencia é das mais negativas: passando a trabalhar com o pior dos coronéis – Mané Frajelo – José, apelidado de Sergipano, conhece a fome e as privações de uma vida miserável e cheia de perigos e desafios. Percebe a escravidão no regime de trabalho, e, com o amor de Mária, filha do coronel, vê a oportunidade de deixar as roças de cacau e se tornar ele mesmo, senhor de terras e de gente. Porém, a sua consciência política não lhe permite e ele tenta organizar uma greve, a qual fracassa antes mesmo de iniciar. O motivo? A exploração é tão grande que, quando ele e seus companheiros estão articulando o movimento, são informados da chegada de mais de trezentas pessoas ‘flageladas’ – futuros trabalhadores em condições mais miseráveis e certamente dispostos a colher cacau por salários ainda mais baixos. José, então, percebe que terá de escolher entre o amor de Mária e a luta por condições de trabalho melhores. Ele não hesita: parte para o Rio de Janeiro, para se engajar de vez a causa socialista, deixando Mária destinada a casar com o noivo, segundo ela própria “um simples almofadinha (AMADO, 2000, p. 128)”.
O patriarcado (rural) e sua conceituação diversa
Antes de adentrar a discussão proposta pelo título, faremos aqui uma breve análise do conceito de patriarcado rural, pois há uma importância singular em especificar as noções do referido regime político, social e cultural, para daí relacioná-lo ao ofício do sexo.
A grosso modo, o termo patriarcado advém do grego pater e aponta para um território sob domínio de um governante, o pai ou patriarca. Porém, conforme o mitólogo Joseph Campbell, o povo hebreu já utilizava o termo pai para indicar seu deus – Iavé, Javé ou Jeová – em contraposição a Deusa Mãe Terra, divindade feminina cultuada pelos demais povos (CAMPBELL, 2002, p. 277). Desta forma, se os povos que adoravam o sagrado feminino o percebiam em toda a terra, os hebreus acreditavam em um deus tribal e territorialista, masculino e autoritário, possuidor de um espaço não-global e rigorosamente delineado, a Terra Prometida, “uma terra que mana leite e mel”[4] a ser conquistada da mão dos demais povos, para que ali pudesse residir com sua população previamente escolhida.
Contemporâneo de Jorge Amado, Gilberto Freyre (1900-1987), lançou olhares acerca da família patriarcal em sua obra Sobrados e Mucambos (1936):
Nestas páginas, procura-se principalmente estudar os processos de subordinação e, ao mesmo tempo, os de acomodação, de uma raça a outra, de uma classe a outra, de várias religiões e tradições de cultura a uma só, que caracterizam a formação do nosso patriarcado rural e, a partir dos fins do século XVIII, o seu declínio ou o seu prolongamento no patriarcado menos severo dos senhores de sobrado urbanos e semi-urbanos(...)[5].

Percebe-se que o pensamento freyreano condiciona a noção de patriarcado aos processos familiares e de subordinação entre classes. A partir disso, é possível inferir que tais processos não se restringem apenas a escravidão nos moldes da exploração da mão de obra africana, mas também na abusiva utilização do labor assalariado, impondo condições subumanas àqueles que vendem sua força de trabalho. Com efeito, Gilberto Freyre nasceu poucos anos após a abolição da escravidão, na efervescência da discussão política sobre os rumos que a República Velha tomaria. Sem o braço escravo do africano, a mão de obra então passou a ser constituída por imigrantes e migrantes[6], trabalhando em condições penosas nas lavouras de café, açúcar e cacau, ganhando baixos salários e sofrendo todo o tipo de assédio. Freyre (2006) também admite que “a formação patriarcal do Brasil explica-se, tanto nas suas virtudes como nos seus defeitos, menos em termos de “raça” e de “religião” do que em termos econômicos, de experiência de cultura e de organização da família, que foi aqui a unidade colonizadora”.[7] Nesse ínterim, ele encarou o patriarcado como um sistema mais próximo da economia. Além disso, apontou para as particularidades rurais do mesmo, mencionando o Norte-Nordeste brasileiro como o “patriarcalismo nortista, de Pernambuco e do Recôncavo Baiano, onde a terra se apresentou excepcionalmente favorável para a cultura intensa do açúcar e para a estabilidade agrária e patriarcal”.[8] Este ponto de vista é relevante nesta pesquisa, pois conforme veremos aqui, a posse da terra tem importância fundamental para a manutenção das relações no patriarcado rural, sejam elas políticas ou de qualquer outra sorte.
Já para Vainfas (1989), o patriarcado rural representa o “eixo fundamental das relações familiares na Colônia” e “seria antes uma grande bandeira dos moralistas da época moderna, os mesmos, aliás, que defenderam a excelência da família conjugal para os povos da cristandade”.[9] Com isso, ele fez referência a família como embrião formador deste tipo de dominação. Neste aspecto, ele e Freyre convergem, pois o segundo também percebe na família um dos eixos mais importantes para a viabilidade da existência dos patriarcas, embora se aprofunde no aspecto sexual: “a zona agrária, desenvolveu-se, com a monocultura absorvente, uma sociedade semifeudal – uma minoria de brancos (...) dominando patriarcais, polígamos (...), lavradores, agregados (...)”[10]. Neste ponto, Freyre adiciona a dimensão da sexualidade como um requisito primário para a instituição do domínio patriarcal, haja vista alguns dos atributos do chefe neste sistema de dominação serem a macheza e a virilidade em subjugar sexualmente diversas mulheres.
Outros autores possuem visões diversas. Mattoso (1992) aponta para a formação de “grupos extensivos”[11] sem a rigidez do modelo patriarcal, embora com elementos característicos deste, como, por exemplo, “a presença dos agregados”[12].
Já para Brügger (2002), Gilberto Freyre
não atribuía à família patriarcal um predomínio quantitativo na população brasileira. O que ele afirma é a existência de uma sociedade na qual os valores patriarcais são os dominantes, embora não sejam os únicos. O que estava em questão não era necessariamente o sexo do chefe de família, mas a representação do poder familiar.[13]

A estudiosa em foco admitiu a predominância do modelo patriarcal proposto por Freyre, mas não a existência única dele. Pelo contrário, percebeu o patriarcado convivendo – não harmonicamente – com outras relações de poder. Por outro lado, Machado (2006), conceitua o patriarcado enquanto:
[...] mecanismo eficiente na constituição e reprodução da desigualdade no interior do vilarejo, e mesmo no interior de cada domicílio. Por esta razão, o desejo de autonomia, e de se tornar um “pequeno patriarca”, acabava por seduzir mesmo os mais modestos, posto que sua concretização seria fonte de enriquecimento e de distinção social, portanto, de mobilidade ascendente.[14]

Para a referida, mesmo os mais desprivilegiados desejam ser patriarcas, haja vista esta transformação representar a inserção nos círculos sociais prestigiados e distantes da miséria. Ser patriarca, assim, distinguia exploradores de explorados, ao mesmo tempo em que definia a hierarquia social.
O comércio sexual: produção e lucro no patriarcado rural
Já vimos a dinâmica da sociedade patriarcal. Cabe apenas frisar que nela homens são dominadores, machos e viris, submetendo diversas mulheres aos seus desejos sexuais, enquanto as últimas são consideradas inferiores e feitas para o sexo e para a reprodução em suas diversas formas, seja esta reprodução de braços de trabalho, de novos patriarcas e também de novas fêmeas reprodutoras. Neste contexto, a mulher é coisificada, seja objeto de prazer, seja ferramenta para reproduzir e perpetuar a lógica patriarcalista. Aí se inscrevem as mulheres consideradas esteios da ética e moral vigente – cabendo a mulher ser esposa e mãe dedicadas e tementes ao deus cristão punitivo e perseguidor pregado pela Igreja Católica – e também as pecadoras, um exército destinado a prestar favores sexuais a tantos homens quantos as procurem, até o seu último dia de vida, com pouca ou nenhuma possibilidade de ascensão social. Estas últimas, em sua grande maioria, filhas da pobreza, crias de lavradores pobres, defloradas enquanto ainda crianças pelos senhores de terra e por seus filhos em busca de diversão, eram jogadas na sarjeta da sociedade, lhes restando apenas o ofício do sexo para a manutenção da sua existência:
quantos mananciais de carinho perdidos, quantas boas mães e boas trabalhadoras. Pobres de vós a quem as senhoras casadas não dão direito nem ao reino do céu. Mas os ricos não se envergonham da prostituição. Contentam-se em desprezar as infelizes. Esquecem-se de que foram eles que as lançaram ali.[15]

Desta forma, a prostituição se encaixou como peça na engrenagem do patriarcado rural. Este mecanismo, perverso em sua dominação, ao mesmo tempo em que gera novas vítimas, se alimenta delas para o deleite da classe dominante, a qual necessita de exemplos a ser ou não seguidos. Assim, as “mulheres da vida” servem para pelo menos dois fins: saciar as fantasias sexuais e também mostrar para as outras mulheres a partir das suas histórias, qual o modelo a ser odiado e desprezado. A elas, uma vez inscritas no círculo do sexo pago – na maioria das vezes, mal pago – restava se conformar com a estrada imposta e sem retorno:
além da tal rua de dois quilômetros, existia em Pirangi um beco sem saída, ao qual chamavam de rua da Lama. Apesar do lamaçal, as senhoras casadas temiam aquela rua de mulheres perdidas. – A polícia devia proibir aquilo – diziam. – Ora, a polícia é a primeira. – É mesmo, D. Rosália. Os nossos maridos vão gastar com aquelas misérias, Deus me perdoe, tudo o que ganham.[16]

Neste cenário, cabe a descrição realizada pelo filósofo francês Michel Foucault (1926-1984):
o casal, legítimo e procriador, dita a lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade (...). Ao que sobra só resta encobrir-se; o decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa os discursos. E se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente, vira anormal: receberá este status e deverá pagar as sanções.[17]

Dentro da estrutura patriarcalista, para a prostituição restou apenas a inserção na lucratividade e a determinação de aberração. Aquelas que atuassem nesse mercado ‘pagariam as sanções’ previstas: a maldição do discurso religioso hipócrita, aliado da conjuntura política, e a discriminação por parte das mulheres casadas, “senhoras de bem”, intolerantes com tamanha abominação: “Frei Bento falava contra elas nos sermões dos domingos. Mas frei Bento, como Zefa me explicou, era freguês [sexual] da esposa do doutor Renato.”[18]
Amado explica a seguir, passo a passo, como era produzida a prostituição na esfera da sociedade patriarcalista cacaueira:
Zefa me contou toda a história. Filha do velho Ascenço, Zilda constituía toda sua família. Trabalhavam para Mané Frajelo, ele na derruba, ela na juntagem do cacau. Moravam na beira da estrada. Todo ano, Osório, o filho do coronel que estudava na Bahia [Salvador], vinha pelas férias até a roça (...). O estudante parava o burro para olhar as coxas de Zilda, bem grossas apesar de dez anos. Um dia Osório vinha para o povoado. O velho Ascenço estava em Pirangi e Zilda arrumava a casa. Começou a chover e Osório pediu agasalho. Não respeitou os dez anos de Zilda. Tragédia de gente pobre: um pai que bota a filha para fora de casa e morre de desgosto.[19]

Mulheres e filhas de cacauicultores se viam em situação de dupla vulnerabilidade. Se por um lado, compartilhavam a miséria com seus maridos e pais, resultado do tratamento abusivo e da exploração da sua força de trabalho, muitas vezes eram submetidas também a exploração sexual, haja vista o principal ator do regime patriarcalista rural, ser a figura do senhor de terras. Este era respeitado e temido. Respeitado por ser o representante político local do poder nacional, grande latifundiário, autor das benesses que lhe eram convenientes para se locupletar no domínio. Temido pois era ele quem instituía e fazia cumprir as leis, não o conjunto de legislações previsto pela Constituição de 1934, mas sim aquelas de sua própria autoria, forjadas na violência dos matadores ao seu dispor, os jagunços, e na coerção.
O comércio do sexo no patriarcado rural obedecia, então, a seguinte dinâmica: produção de prostitutas a partir de situações de miséria e violação, como no caso de Zefa, imposição da moral vigente da época, a qual exigia que os pais em casos como este expulsassem suas filhas de casa e, por fim, a chegada dessas pessoas ao único local que as acolhia, as casas de prostituição. Lá, a maioria delas passaria o resto da vida. A sua mobilidade social nas poucas vezes em que ocorria era frágil, e representava a mudança para uma casa luxuosa, providenciada por um coronel que lhes exigia fidelidade enquanto durasse o seu interesse sexual, ou mesmo quando saíam da condição de exploradas para exploradoras de outras prostitutas, se tornando cafetinas e, lucrando financeiramente, aumentando também o lucro sexual dos patriarcas. Enquanto isso, o que sobrava para muitas eram doenças sexualmente transmissíveis (DSTs): “fomos para a casa das mulheres sob uma chuva miudinha. Quando entrei no quarto, Antonieta me disse: – Meu filho, não posso andar com você. Prefiro não ganhar o dinheiro. Já tô quase boa, mas assim mesmo...”[20]
O patriarcado contemporâneo: à guisa de reflexão
Apesar dos inquestionáveis avanços nos direitos das mulheres, atingidos principalmente pelas lutas dos movimentos feministas desde a segunda metade do século passado, o patriarcado ainda perdura na sociedade brasileira atual. Pode-se afirmar acerca do enfraquecimento e decadência dos seus moldes rurais, mas sua ideologia continua presente e atuante. O corpo feminino ainda é visto como objeto ao dispor das fantasias masculinas, sendo exposto na mídia em propagandas de conteúdo sexualmente provocador. Ao mesmo tempo, a mulher tem o direito de escolha ao aborto negado, em uma clara mostra do controle e autoritarismo do Estado Brasileiro imposta a subjetividade feminina. A divisão sexual do trabalho persiste, com a mulher excluída, ou pouco incluída, em profissões dominadas por homens. Quando se aborda experiências profissionais de mulheres em determinadas posições, isso não as exclui do assédio moral e da remuneração inferior ao homem no mesmo cargo e em condições similares de trabalho. E a violência doméstica perpetrada por homens contra mulheres é comum e banalizada pelos organismos da imprensa nacional.
Para Bruschini (1993), persiste o ponto de vista repressor à sexualidade feminina e o discurso de desprezo e ódio ao adultério feminino – visto como promiscuidade – ao mesmo tempo em que prossegue a exaltação da infidelidade masculina como sinal de virilidade e poderio.
Conforme Chauí (1985) “violência [é] (...) toda e qualquer violação da liberdade e do direito de alguém ser sujeito constituinte de sua própria história. Liberdade aqui entendida como ausência de autonomia”[21]. Deste modo, pode-se inferir que a violência contra a mulher precede a agressão física e se apresenta nas relações de gênero da contemporaneidade, entre outros aspectos, na negação do direito de controle do corpo, na competição em condições desiguais com os homens no mercado de trabalho e na imposição de discursos de inferiorização.
Considerações finais
O Ciclo do Cacau, iniciado pela obra que leva o nome desse saboroso fruto, foi intensamente divulgado por Jorge Amado e representou mais de meio século em sua carreira literária. Nele, o escritor baiano repercutiu as contradições e os impasses de uma sociedade imersa em discursos de falsa moralidade. Expôs a prostituição como instrumento de marginalização das mulheres, normalmente atiradas para esta labuta pelos grandes proprietários de terra e sua prole masculina, ávida em saciar suas aspirações sexuais irrestritas e perversas. Denunciou ainda a pedofilia, quando trouxe à tona relatos de iniciação sexual como os de Zefa, com apenas dez anos, levada a prostituir-se sem a possibilidade da escolha de outro destino.
Amado encabeçou a lista de escritores de sua geração ao descrever um público profundamente massacrado, exaltando a sua dignidade e a sua forma honesta em experimentar vivências amargas. Mais do que isso: ele convidou a sociedade a se despir dos seus preconceitos e enxergar nas putas, mulheres com outros caminhos possíveis, caso não tivessem suas trajetórias radicalmente desviadas. De fato, ainda hoje elas se encontram sem garantias legais dos seus direitos trabalhistas, em uma clara prova da manutenção do patriarcado aliado ao discurso religioso de vertente fundamentalista.
Com os avanços realizados por grupos feministas ao redor do globo, já não deveria haver mais espaço para visões machistas e sexistas acerca das prostitutas. Infelizmente, porém, conceitos retrógrados perduram, muitos dos quais conduzem a violência contra este grupo. Daí a importância de aprofundar mais a temática dos direitos das mulheres, em especial das profissionais do sexo.
Referências
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VAINFAS, Ronaldo. O trópico dos pecados. Rio de Janeiro: Campus, 1989.



[1] AMADO, JORGE. Cacau. 52ed. Rio de Janeiro: Record, 2000, 131 páginas.
[2] Estudante do Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade / Nugsex Diadorim da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Graduando em Psicologia e licenciado em Letras com Inglês pela mesma instituição. Pós-graduado em Língua, Linguística e Literatura pela Faculdade Regional de Filosofia, Ciências e Letras de Candeias. Professor de Inglês do Colégio Francisco de Assis, Salvador. E-mail: armando.psicologia@hotmail.com.
[3] Vice-Coordenador do Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade / Nugsex Diadorim da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Professor Assistente de Antropologia do DCH – Campus V pela mesma instituição. E-mail: mmartins@uneb.br.
[4] BÍBLIA, Livro dos Hebreus. Bíblia Sagrada. Trad. do Novo Mundo das Escrituras Sagradas, 1986. São Paulo: Edições Watchtower Bible and Tract Society of New York e Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, 1986. Hebreus 8, vers. 10.
[5] FREYRE, GILBERTO. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento urbano. São Paulo: Global, 2003, p. 27.
[6] Quando nos referimos a imigrantes e migrantes, apontamos para populações vindas tanto do exterior quanto de outras partes do Brasil, respectivamente. Um exemplo de imigração é o caso de trabalhadores de várias nacionalidades, vindos ao Brasil na primeira metade do século passado para trabalhar nas lavouras de café. Por outro lado, a migração pode ser exemplificada quando populações se deslocaram de outros regiões brasileiras para as lavouras de cacau, no sul da Bahia.
[7] FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 51 ed. São Paulo: Global, 2006, p. 34.
[8] Idem.
[9] VAINFAS, Ronaldo. O trópico dos pecados. Rio de Janeiro: Campus, 1989, p. 118-119.
[10] FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 51 ed. São Paulo: Global, 2006, p. 33. Grifos nossos.
[11] MATTOSO, Katia de Queirós. Família e Sociedade na Bahia do século XIX. São Paulo: Corrupio: CNPq, 1988, p.12.
[12] Idem.
[13] BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas Patriarcal – família e sociedade. (São João del Rey, séculos XVIII e XIX). 2002. Tese (Doutorado em História) – Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2002.
[14] MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na produção da hierarquia social. (São José dos Pinhais – PR, passagem do XVIII para o XIX). 2006. Tese (Doutorado em História) – Departamento de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006, 280 páginas, p. 126.
[15] AMADO, JORGE. Cacau. 52ed. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 57. Grifos nossos.
[16] Idem, p. 53. O primeiro grifo é nosso.
[17] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Trad. de Maria Thereza da Costa e J. A. Guilhon Albuquerque. 22ed. Rio de Janeiro: Graal, 2012, p. 9-10.
[18] AMADO, JORGE. Cacau. 52ed. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 57
[19] Idem, p.54.
[20] AMADO, Jorge. Cacau. 52 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 51.

[21] CHAUI, Marilena. Participando do debate sobre mulher e violência. In______: Perspectivas antropológicas da mulher. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 35.